Por Cristóvão Macedo Soares

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, apreciando o RE 606.003, estabeleceu, por maioria, nos termos do voto divergente do Ministro Luís Roberto Barroso, a fixação da seguinte tese:  “ Preenchidos os requisitos dispostos na Lei 4.886/65, compete à Justiça Comum o julgamento de processos envolvendo relação jurídica entre representante e representada comerciais, uma vez que não há relação de trabalho entre as partes”.

É importante frisar que o STF não limitou a competência da Justiça do trabalho para julgar ações cujo objeto, embasado em situações de fato específicas, seja o reconhecimento do vínculo empregatício, mesmo quando o aspecto formal da relação for o de uma representação comercial. O voto faz essa expressa ressalva, no item 23 da sua fundamentação:

“23.Ademais, a competência material é definida em função do pedido e da causa de pedir. Conforme decidiu esta Suprema Corte, a definição da competência decorre da ação ajuizada. Tendo como causa de pedir relação jurídica regida pela CLT e pleito de reconhecimento do direito a verbas nela previstas, cabe à Justiça do Trabalho julgá-la; do contrário, a competência é da Justiça Comum (CC 7.950, rel. min. Marco Aurélio, j. 14-9- 2016, P, DJE de 1º-8-2017).”

Portanto, a tese fixada não se presta como um precedente capaz de, por si só, fundamentar arguições de incompetência absoluta nas defesas que se contrapõem, em matéria de representação comercial e, por similaridade, entre outras, de contratos de franquia, a pleitos que visam à declaração do contrato de emprego. A própria decisão do STF foi proferida em controvérsia na qual a relação de representação comercial não foi contestada pela parte autora, cingindo-se o pedido ao pagamento de comissões decorrentes dessa espécie de negócio jurídico, entendendo o Ministro Barroso, com o apoio da maioria, que tal liame não se insere na competência atribuída pelo art. 114 da CF à Justiça do Trabalho, distinguindo relação comercial e relação de trabalho.

No entanto, indo um pouco além dessa inequívoca interpretação, considero de grande relevância a fundamentação do julgado, no seu item pertinente ao “ Contrato de Representação Comercial”.

De plano, o Voto Vogal  ressalta a tipificação legal do contrato de representação comercial, destacando que dele, em tese, não se extrai o elemento de subordinação jurídica:

“11. A Lei nº 4.886/65 regula as atividades dos representantes comerciais autônomos, os quais tem o objetivo de mediar as partes para que estas celebrem negócios jurídicos. A representação comercial é contrato típico, previsto no art. 1° desta lei:

“Art.1º. Exerce a representação comercial autônoma a pessoa jurídica ou a pessoa física, sem relação de emprego, que desempenha, em caráter não eventual por conta de uma ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis, agenciando propostas ou pedidos, para, transmiti-los aos representados, praticando ou não atos relacionados com a execução dos negócios.”

 

  1. Não há, nos termos do dispositivo acima, vínculo de emprego entre representante e representado. Utilizando-se os parâmetros da própria Consolidação das Leis do Trabalho, de acordo com o art. 3º da CLT, a relação de emprego caracteriza-se pelos seguintes elementos: (i) onerosidade, (ii) não-eventualidade, (iii) pessoalidade e (iv) subordinação. O serviço prestado pelo representante comercial não apresenta o elemento da subordinação, já que não se submete a ordens, hierarquia, horário ou forma de realização do trabalho, como se extrai da Lei nº 4.886/65. Não sendo subordinado como o empregado, não está sujeito ao poder de direção do empregador e pode exercer sua atividade com autonomia.”

Nessa esteira, citando portentosa doutrina, o voto adentra à singularidade da relação, de modo geral, entre representante e representado, que, mesmo envolvendo pessoalidade, obrigações diretas do agente perante o proponente, delimitação pelo proponente do campo de atuação do representante, contraprestação remuneratória resultante de produtividade e exclusividade, não se confunde com a subordinação jurídica e não afeta a autonomia do representante comercial, segundo a sua legítima tipificação legal:

“13. Sobre o conceito de representação comercial e a autonomia do representante, ensina Sílvio de Salvo Venosa ( Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos . 14. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 570):

“Pelo contrato de representação, uma empresa atribui a outrem os poderes de representá-la sem subordinação, operando por conta da representada. O representante é autônomo, vincula-se com a empresa Plenário Virtual – minuta de voto – 22/09/20 10:43 6 contratualmente, mas atua com seus próprios empregados, que não se vinculam à empresa representada”.

14.O representante comercial exerce, deste modo, atividade empresarial, praticando atos de comércio, a caracterizar a natureza mercantil da sua profissão (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 23. ed. São Paulo: Saraiva. v. 1, p. 187-189). Ainda que seja pessoa física, possui independência no ajuste e execução e, portanto, é “ um empresário modesto, cuja empresa consiste em sua atividade pessoal e em instrumentos e elementos de escasso valor ” (VARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 29. ed, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 35). Fica afastada, desta forma, não apenas a relação de emprego, mas igualmente a relação de trabalho.

 

  1. Entram na composição do contrato os seguintes elementos: “ 1- a obrigatoriedade do agente de promover a conclusão de contratos por conta do proponente; 2- habitualidade do serviço; 3- delimitação da zona onde deve ser prestado; 4- direito do agente à retribuição do serviço que presta; 5 – exclusividade e independência de ação ” (GOMES, Orlando. Contratos, 12ª ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 409). Tais elementos em nada modificam a autonomia inerente à prestação do serviço pelo representante.

 

  1. Estes elementos caracterizadores do contrato de representação comercial podem ser igualmente extraídos do art. 27 da Lei 4.886 de 1965 e caracterizam uma coordenação inerente aos contratos de representação comercial, em que estão presentes orientações gerais do representado ao representante, situação que não se confunde com a subordinação trabalhista.”

A fundamentação do voto avança ainda mais, lembrando o recente posicionamento do E. STF (ADPF 324) sobre a legalidade da terceirização de serviços, ainda que abrangendo o exercício da atividade finalística do tomador, para afirmar que a proteção constitucional ao trabalho não está jungida à relação de emprego:

“18. É válido observar, igualmente, que a proteção constitucional ao trabalho não impõe que toda e qualquer relação entre o contratante de um serviço e o seu prestador seja protegida por meio da relação de trabalho (CF /1988, art. 7º). Com base neste entendimento, o Supremo Tribunal Federal Plenário Virtual – minuta de voto – 22/09/20 10:43 7 proferiu decisão, nos autos da ADPF 324, reconhecendo a compatibilidade da terceirização de toda e qualquer atividade – inclusive da atividade-fim – com a Constituição, tendo, mais recentemente, reafirmado a conclusão ao julgar a ADC 48, em relação ao transporte de carga, disciplinada na Lei nº 11.442/2007.”

Nesse contexto, penso que tais fundamentos proporcionam novos ingredientes capazes de instigar, na própria esfera trabalhista, as controvérsias sobre vínculo de emprego em relações ajustadas sob a forma de representação comercial, tanto no mérito quanto processualmente.

Do ponto de vista do processo, a decisão do E. STF, conjugada ainda com a previsão do art. 442-B, da CLT, permite inferir que a existência de prestação de serviços pessoais, oriunda de representação comercial , devidamente formalizada, ao contrário do que soe acontecer na análise de casos dessa natureza , não inverte o ônus da prova e nem muito menos faz presumir a relação empregatícia, corroborando, ao revés, a teor da regra processual, ser da parte autora o  onus probandi quanto à alegação de configuração de vínculo diverso daquele celebrado entre as partes, mediante formato revestido de reserva legal, conforme sublinhado nas razões de decidir do Voto, acima destacadas.

Por sua vez, no mérito da questão, o posicionamento do STF reforça que circunstâncias comumente tidas pelo judiciário trabalhista como características de uma relação de subordinação jurídica, são, na verdade,  inerentes também a uma genuína representação comercial, por força dos elementos expressamente indicados no art. 27, da Lei 4.886/65.

Em suma, a competência da Justiça do Trabalho, quando se postula o reconhecimento da relação de emprego, não implica desconsiderar, no exame casuístico do tema em questão, os fundamentos empregados no Voto prevalecente, que ensejaram a fixação de tese pelo Supremo Tribunal Federal.

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